sábado, 20 de setembro de 2008

Tarde de Domingo

(foto por Alexbalix - DeviantArt)

Os últimos acordes de alguma canção do tipo sofra-e-deixe-sofrer soavam do seu aparelho de som, ele procurou a carteira de cigarros e percebeu que em breve estaria sem pregos para o seu caixão. Era sempre assim e, principalmente agora, parecia ser mais evidente o grande complô que o mundo havia arquitetado contra ele. Sem dúvida alguma ele era um derrotado.

O quarto estava uma bagunça só, e o único pensamento que lhe ocorreu era o de que se ela estivesse ali, tudo seria diferente. Lembrou o quanto odiava ver cada coisa em seu determinado lugar, mas pareceu-lhe que o ódio das certezas seria suportável ante o peso da solidão. Não importava, o que aconteceu, aconteceu, e agora só lhe restava a certeza de não ter mais nenhuma. Nenhuma alegria, nenhuma harmonia, nenhuma mulher, nada. Havia um computador onde poderia escrever suas desesperanças, mas não havia mais desejo. Junto ao computador estava a TV, mas o que assistir num Domingo à tarde? Na estante, os livros e a assinatura da sua revista preferida. Uma pilha de notícias intocadas. Roupas, sapatos, pentes, a escova de dentes jogada no chão na trilha que as formigas faziam. Pensou que pelo menos alguém estava fazendo algo de produtivo e, logo em seguida, surpreendeu-se vendo quantas bobagens um solitário tedioso pensava numa tarde sem fim.

Numa das mãos o cigarro lançava sua fumaça mágica, fazendo piruetas indescritíveis. Na outra, o revólver pesava como se fosse uma bigorna. Sentiu um certo calafrio. Repetidas vezes lembrou-se das maldições bíblicas a respeito de suicidas, mas ele também não tinha certeza se acreditava ou não no que leu. Estava disposto a arriscar, o inferno não poderia ser pior do que o que ele estava vivendo agora. Pensamento terminado, gesto automático de pegar mais um cigarro. Olhou de soslaio para o revólver. Ele olhou de volta com sarcasmo...

Uma rápida checagem ao redor lhe garantiu que não tinha ninguém em casa. As vozes assombradas que escutava vinham de sua mente. O revólver continuava a sorrir e, de sua parte, pouco se importava. Ria canalha. Talvez você me tenha, talvez não. Não tinha certeza de que o mecanismo funcionaria, nem de que a munição estava em condição de disparo. Comprara a arma de um conhecido malandro, que lhe garantiu de pés juntos como um santo, que o produto, apesar do aspecto suspeito, estava em sua plena capacidade funcional. Não importava. Poderia pular do prédio, a queda era pequena, mas caindo da maneira correta tinha poucas dúvidas que conseguiria consumar sua intenção.

O Ministério da Saúde gasta uma soma incomensurável para convencer as pessoas de que devem transar de camisinha. Ele pouco se importava. Com, ou sem, nunca deixava de sair com uma garota. Um belo dia, um dos seus amigos foi agraciado com uma DST séria, nada incurável, mas dava uma dor dos diabos. Ele ficou impressionado com o sofrimento do camarada. Ambos comemoraram com uma cervejada inesquecível quando o tratamento acabou e passaram a noite conjeturando que poderia ter sido muito pior. Ele passou a usar a camisinha como um ritual quase religioso. Viu-se até na inusitada situação de recusar uma boa transa. Tudo bem, tudo em nome da saúde.

Mas sobreveio a paixão, uma paixão verdadeira. Carnaval, bloco na rua, bebida, ela longe de casa, ele louco por ela, ela manhosa, ele sem camisinha. Nove meses depois, um filho. Sem dúvida seu.

A partir daí tudo mudou. Aceitou a idéia de que estava na hora de se acalmar num canto, de montar família, ser um senhor de respeito. Pensou até em deixar o bigode crescer, sabe como é, homem que é homem tem um. Ela não deixou, ele só fazia sorrir. Meses depois veio o acidente, foram-se todos. Veio a bebedeira, foi-se o emprego. Chegou a depressão, foi-se a vontade de viver.

Levantou-se do sofá para mudar o disco. Detestava sofrer no silêncio. Buscou alguma coisa dolorosa entre a sua coleção de LP’s e botou para tocar. Bebericou da aguardente, coçou o saco, soltou um pum. Percebeu-se olhando fixamente para o cano do revólver, que olhava fixamente para o seu cérebro. Por um momento jurou ter visto o cano piscar de maneira sacana. Que escroto. Ainda tinha alguns cigarros. Decidiu-se dar o tempo deles. Depois descobriria se fora enganado ou não quando comprou o revólver. Mas só depois. Por enquanto vamos assistir as formigas trabalharem.

3 comentários:

Narradora disse...

Acho interessante essa construção... ir seguindo o pensamento do personagem que aos poucos vai dando forma à narrativa.
Ah, concordo com o moço, quanto à necessidade de trilha sonora...rs
Bjs

Camilla disse...

Descerveu tão bem o domingo de um homem triste e entediado.E até o final, com tantas histórias, eu não sabia que o revólver cuspiria ou não. O Cigarro? Poderia ser uma metáfora pra revólver tbém, não é? vamos devagar. Adorei o jeito como narrou. Triste, bem escrito.
Que bom ler o poeta de volta.

Letícia disse...

Vou te contar... eu ri muito. Porque essa crônica fala de um mundo agudo como a agulha de toca discos. E o texto saiu das formigas, passou por toda a evolução de um homem que sente tédio em dia de domingo e voltou às formigas como se apenas elas soubessem trabalhar. Amigo, esse homem também sou eu.

E cada vez melhor a sua narrativa.