segunda-feira, 11 de agosto de 2008

Café Donzelo

(Foto por Beccarekley - DeviantArt)



Sempre achei muito esquisito e até hoje não consigo entender o porquê das pessoas visitarem o túmulo dos seus entes queridos no dia do aniversário de suas mortes. O cemitério é justamente o local que representa qualquer coisa menos a obra, a vida, o legado da pessoa que era amada. Para mim é um bocado deprimente, primeiro que não há alegria nenhuma no ambiente, é tudo muito... muito... morto, com perdão do trocadilho. Assombra-me logo uma tristeza só em ver aquele monte de túmulos, que se soma à tristeza da perda do parente ou amigo que perdi. Acho ainda mais terrível quando as pessoas decidem ir ao cemitério no dia de finados. Primeiro que não vejo nenhuma razão palpável para se ter um dia especial para se visitar os mortos, eles não nos escutam, não nos vêem, não nos contam as novidades do além vida, então o que diabos, ou anjos se você preferir, as pessoas vão fazer lá? Depois, o cemitério se transforma num formigueiro, lotado de gente que vem e que vai, que trazem suas velas e suas flores, que choram, que riem, que contam piadas durante a visita, nada contra as piadas e a alegria, pois é certo que existem muitas maneiras de se homenagear a quem se ama. E é neste ponto que eu quero chegar, na homenagem.


Meu avô era um cara bem legal, nascido e criado no interior do estado. Tinha todos os predicados que fazem de um homem do interior um verdadeiro homem do interior. Foi com ele que minha família aprendeu que palavra dada valia mais do que palavra escrita. Honestidade, verdade, respeito às pessoas, eram coisas que deveriam fazer parte da nossa vida, tanto quanto a necessidade de respirar. Foi com ele também que aprendemos que era muito mais importante o amor partilhado e dedicado dentro de casa do que o volume da conta bancária. Era um homem simples que teve uma vida simples. Passou por maus bocados quando serviu ao exército e foi pracinha na Itália. Um belo dia, perguntei-lhe se ele havia matado algum soldado alemão, ele levou algum tempo para responder e me veio com um papo de que não dava para saber por que nos combates havia sempre muita fumaça. E logo depois mudou de assunto. Entendi de imediato que o assunto era proibido. Depois notei que ninguém na família tocava no assunto, principalmente os filhos, meus tios, o que me deixou ainda mais convencido de que deveria deixar a guerra para o cinema. Na vida real a coisa deveria ser bem diferente.


Dentro de casa era uma figura ímpar. Veio morar conosco na época da doença e morte de minha avó, sua esposa, primeira e única a preencher o seu coração com aquela certeza de que se está ao lado da pessoa certa. Quando minha avó morreu, ele ficou muito abalado durante um tempo. Vivia dormindo e confessou que gostaria de dormir sem parar, estava deprimido, o que nos deixou um pouco preocupados. Melhor dizendo, um bocado preocupados! Mas não tínhamos muito o que fazer, fora ajudá-lo a enfrentar a perda. Depois retornou aos poucos à sua jovialidade.


Ele fazia alguns dos serviços de casa como, por exemplo, lavar os pratos. Nos dias em que muita gente ia lá em casa para jantar ou almoçar e ficava aquele monte de louça sobre a pia ele exclamava, “isso aqui está pior do que cozinha de hotel”. Sempre com um sorriso maroto nos lábios. E sem reclamar mais, se é que isso era uma reclamação, se lançava ao trabalho sob protestos das filhas que se revezavam em mandá-lo sentar-se em frente a TV. Pensa que ele dava bola? Toda vez que vejo qualquer pia lotada de louça eu quase ouço a voz dele repetindo o bordão.


Ele gostava muito de assistir jogos de futebol e é daqui que tenho uma das lembranças mais vivas. Todas às vezes, todas mesmo, que fosse apitado um impedimento ele vinha com a mesma tese de que o impedimento deveria acabar, que não poderia existir tal regra, que no final das contas seria bom para os dois times se a falta não fosse mais marcada, e coisa e tal. Às vezes era engraçado vê-lo reclamar, outras nem tanto, quando por exemplo havia muitos impedimentos num jogo só...


Também com relação à TV ele reclamava dos finais de novela que achava sempre uma droga. Dizia que as pessoas passavam a novela inteira sofrendo ou em busca de um grande amor, e que no final só sobrava um mísero capítulo, e às vezes nem isso, para que elas fossem felizes. Antes de assistir a novela ele dava boa noite para Cid Moreira, no final do Jornal Nacional. Sempre respondia, sem ao menos se lembrar que o Cid estava a milhares de quilômetros de distância. Vai ver era só por respeito, ou por pena de não deixar a saudação do Cid no ar.


Os britânicos que me perdoem, mas mais pontual do que meu avô não havia ninguém. Por ter sido militar ele dizia o seguinte: “se nós marcamos uma ação para as dez horas, então dez horas é a hora, dez e um não é a hora e um minuto para as dez não é a hora. Dez horas é a hora”. Sendo assim, caso você marcasse uma hora com ele era melhor não atrasar, pois veria um homem bastante irritado, e como não era de sair distribuindo impropérios a torto e a direito, ficava com a cara amarrada e resmungando respostas monossilábicas. Muitas vezes vi essa cena, deveria ser difícil pra ele viver num país onde todo mundo acha que atrasar meia hora é perfeitamente normal.


Outra cena inesquecível era vê-lo jogar paciência. Ele sabia uma porção de tipos diferentes e se colocava a jogá-los durante a tarde inteira. Calado e concentrado de um jeito que fazia parecer que não havia mundo ao seu redor. Ensinou-me um jogo que dava para jogar de dois. Jogamos talvez umas dez vezes, ele ganhou todas, eu desisti.


Nenhum dos netos ousava enfrentá-lo, e olha que ele nunca levantou uma mão sequer para nenhum de nós. Também não precisava, bastava olhar. Não ficava pegando no pé de ninguém, deixava o barco correr solto, mas depois chegava junto para dar uns conselhos. Como eu disse, logo no começo, ele era um cara legal. Tinha toda a família do seu lado, e pode ter certeza de que ele junto com vovó fez um bom trabalho. Todos, ou quase todos, cresceram para tornarem-se homens e mulheres dignos do sobrenome que carregam.


Lembro da época em que eu, aluno secundarista, acordava cedo para ir para a aula. Ele acordava antes de mim, aliás, antes de todo mundo dentro de casa, e ia direto para a cozinha. Como bom nordestino, ele acreditava que um bom café da manhã tinha que ter cuscuz. Quando eu acordava o cuscuz já estava pronto, mas o café não, ele ainda estava passando o café, e como se fosse sincronizado (e talvez realmente fosse), chegávamos juntos na mesa eu e a garrafa. Tomar aquele café era um momento especial da manhã. Chegou uma época em que eu enjoei do cuscuz, mas do café nunca.


Certa tarde, minha mãe foi fazer umas tapiocas para o lanche e meu avô correu para ajudar fazendo um café. Foi quando ouvi pela primeira vez a expressão “café donzelo”. Não me agüentei de curiosidade e perguntei-lhe como um café poderia se donzelo. Ele me olhou com aquele ar de quem é sério por força do hábito, mas que estava rindo por dentro e disse-me, “filho, um café donzelo é aquele que é novo, quente e forte, entendeu?”. Claro, por que nunca havia pensado daquele jeito? Tomar o café de meu avô era como amar uma mulher virgem todos os dias, sempre nova, sempre intensa, sempre quente. Requentar café? Isso era apostasia. Tomar o famoso “chafé”? Aquele café ralo e frio? Isso era mesmo que tomar água de esgoto para ele. Ficar sem tomar café? Era o mesmo que a morte, que infelizmente um dia chegou à sua porta, assim como um dia chegará à minha.


Enquanto isso, quando me lembro dele e desejo homenageá-lo, ou passo um café como nos velhos tempos ou vou a um cafezinho e digo:


– Traga-me um café donzelo.

– Como senhor? Não entendi.

– Um café expresso, novo, quente e forte.


Acho melhor do que ir ao cemitério.

6 comentários:

Ana Fernandes disse...

Meu Anjo,

É muito bom relembrar pessoas que marcam nossas vidas de forma tão sincera! Seu texto é uma bela homenagem.

Bjs.

Narradora disse...

Lindo texto, muito mesmo. Lembra um tipo diferente de saudade, aquela que sorri pra e com a gente.
Bjs (respeitosos...rs)

Vivian disse...

...depois de te ler, agora me vem a pergunta: como não ir ao cemitério, mesmo sabendo que o que repousa por lá, são meros restos de uma máteria que abrigou uma alma linda como a do seu avô?...não gosto de cemitérios, mas gostando ou não, será o fim da linha por aqui, não é assim?...no mais, um café quentinho para brindar seu post!...muahhhhhh

Camilla Tebet disse...

Que texto lindo! Que homenagem pode ser mais bonita do que aquela que lembra honestidade, pontualidade, amor distribuido em partes iguais, doçura, reteza de caráter. E mais, lembranças dele em vc mesmo. Isso é legado. Isso é uma vida bem vivida. Nossa história é mesmo construída com elementos dos nossos amados e a sua história me tocou muito. Talvez porque eu tenha um super avô, firme e forte, como" um baobá", como ele diz. E tê-lo me faz mais feliz. Parabéns pela homenagem e pela sorte de ter tido ele em sua vida.
Qto ao papo de cemitério, concordo com vc, a lembrança é diária e em qualquer lugar. MAs crenças e tradicioções ocidentais de culto ao corpo morto é coisa difícil de quebrar. Eu particularmente nao vou. Mas se o cemitério ajuda as pessoas a se sentirem mais "próximas" de quem partiu, pois que encham os cemitérios. Não é?
Tava com saudade dos seus textos. E peço licença para usar o termo café donzelo. Adorei. Agora quero só donzelos nas minhas manhãs.
Beijos, poeta.

Letícia disse...

Também não entendo essa coisa de visitar túmulo. Já perdi pessoas queridas e não gosto de imaginar que elas estejam lá, no chão. Prefiro escrever ou lembrar e fazer algo que traga lembranças boas. Seu texto me fez lembrar o filme PS. I Love You. Adorei, por sinal. Vc escreve crônicas, João. Perfeitas. :)

Bjs, amigo.

E Superman é Tudo. Filme que reprisa e não perco por nada. Aquele cabelhinho dele com gel é poesia da melhor qualidade.

*blackcat* disse...

Prendeu minha atenção...Gostei de tudo que li, já é um dos meus favoritos...Beijos
Obs:"O som tá ótimo mas...não tem U2? buáaaa...hahaha"