sábado, 2 de maio de 2009

Eu, etiqueta



Em tempos que temos mais do que somos, um pouco das palavras do Drummond para reflexão...





Eu, etiqueta


Em minha calça está grudado um nome que não é meu de batismo ou de cartório um nome... estranho, meu blusão traz lembrete de bebida que jamais pus na boca, nesta vida. Em minha camiseta, a marca do cigarro que não fumo, até hoje não fumei. Minhas meias falam de produto que nunca experimentei, mas não são comunicados aos meus pés. Meu tênis proclama colorido de alguma coisa não provada por este provador de longa idade. Meu lenço, meu relógio, meu chaveiro, minha gravata e cinto e escova e pente, meu copo, minha xícara, minha toalha de banho e sabonete, meu isso, meu aquilo, desde a cabeça aos bicos dos meus sapatos, são mensagens, letras falantes, gritos visuais, ordens de uso, abuso, reincidência, costume, hábito, premência, indispensabilidade e fazem de mim homem – anúncio itinerante, escravo da matéria anunciada. Estou, estou na moda. É doce estar na moda, ainda que a moda seja negar minha identidade, trocá-la por mil, açambarcando todas as marcas registradas, todos os logotipos de mercado. Com que inocência demito-me de ser eu que era antes e me sabia tão diverso de outros, tão mim mesmo, ser pensante, sentinte e solidário com outros seres diversos e conscientes de sua humana e invencível condição. Agora, sou anúncio, ora vulgar, ora bizarro, em língua nacional ou em qualquer língua (qualquer principalmente). E nisto me comprazo, tiro glória da minha anulação. Não sou - vê lá – anúncio contratado. Eu que minuciosamente pago para anunciar, para vender em bares, festas, praias, pérgulas de piscinas, e bem à vista exibo esta etiqueta global no corpo que desiste de ser veste e sandália de uma essência tão viva, independente, que moda ou suborno algum compromete. Onde terei jogado fora meu gosto e capacidade de escolher, minhas idiossincrasias tão pessoais, tão minhas que no rosto se espelhavam e cada gesto, cada olhar, cada vinco da roupa resumia uma estética? Hoje, sou costurado, sou tecido, sou gravado de forma universal, saio da estamparia, não de casa, da vitrine me tiram recolocam, objeto pulsante, mas objeto que se oferece com o signo de outros objetos estáticos, tarifados. Por me ostentar assim, tão orgulhoso de não ser eu, mas artigo industrial, peço que meu nome retifiquem. Já não me convém o título de homem, meu novo nome é coisa. Eu sou a coisa, coisamente.


Carlos Drummond de Andrade

3 comentários:

Narradora disse...

Triste ter mais do que ser...
Adoro Carlos.
Bjs

João Neto disse...

Ainda outro dia tentaram me vender uma camisa da Coca-cola. Nada contra refrigerante, sou viciado, mas o problema é que me recusei a comprá-la dizendo não querer pagar para fazer propaganda... que tolo fui. E minha camisa com o nome Puma gigante na frente, meu tênis Nike, minha calça sabe-se lá o quê...

O Drummond é que tem razão, somos etiquetas ambulantes, transformados por nossos pares em coisas cujo propósito é reproduzir o comportamento exigido pelo capital: o consumo.

Alessandro Medeiros disse...

Ele é um dos Caras!!! Grande Drummond...